Recentemente, o IBGE divulgou a Síntese de Indicadores Sociais do Brasil de 2022, que revela um índice de 49% para crianças, de 0 a 14 anos, em situação de pobreza; enquanto 10% dessa população se encontram em situação de extrema pobreza.
Outro dado levantado pela estatística aponta que 72% das mães solos negras, com filhos de até 14 anos, estão na linha da pobreza, sendo que a situação de 22,6% desse arranjo familiar vive em extrema pobreza.
Embora o conceito de pobreza não seja unânime e, a depender de órgãos nacionais e internacionais, ele admita prerrogativas quantitativas e qualitativas, podemos partir do entendimento comum de que pobreza diz sobre precariedade das condições de vida de uma população. Ou, ainda, da falta de acesso a serviços básicos para uma vida digna.
Dessa forma, encarar esses dados nos faz descobrir que a realidade de mais da metade da população infantojuvenil brasileira é permeada pela desigualdade social.
Ou seja, ao desatar o “nó” de números, encaramos muito mais do que dados: olhamos sujeitos constituídos por experiências adversas de estrutura habitacional, alimentar, de acesso à educação, à saúde, à segurança, de tecnologia, de afeto familiar, de racismo.
Se é nessa precarização que grande parte das nossas crianças experiencia o mundo, a Psicanálise não pode fechar os olhos para contextos tão alarmantes de formação do psíquico.
Para Lacan, quando nasce, o bebê é um ser vivente sem consciência corporal e é o banho de linguagem pelo Outro que atribui seu lugar no mundo. E, somente quando finalmente é separado da mãe pela função paterna, o processo de alteridade dessa criança é evidenciado e o de sujeito inconsciente é inaugurado.
“Quem eu sou?”, “Como eu me identifico com o outro?” passam a guiar a criança no seu acesso ao simbólico de constituição do Eu, levando-a por uma série de identificações, conforme Freud (1921) aponta, com os aspectos ou atributos do Outro.
Assim, pode-se supor que o ambiente familiar é o primeiro fundador do ideal do ego que, com efeito, produz a conexão da normatividade libidinal com uma normatividade cultural, conforme bem lembra Neusa Santos em seu livro “Tornar-se Negro” (2021): “O contexto familiar é o lugar primeiro em que a ação constituinte do ideal do ego se desenrola. É aí que se cuida de arar o caminho a ser percorrido, antes mesmo que o negro, ainda não sujeito, a não ser ao desejo do Outro, construa o seu projeto de chegar lá. Depois, é a vida de rua, a escola, o trabalho, os espaços de lazer. Muitas vezes, é nesses lugares segundos, plenos de experiências novas, que o ideal do ego - cujas vigas mestras já foram erigidas - encontra ocasião de se reforçar, assim adquirindo significado e eficácia de modelo ideal para o sujeito”.
Uma vez que as relações em nossa sociedade brasileira são baseadas no racismo, no preconceito, no classicismo e sabendo que o sujeito se constitui a partir do olhar do Outro, qual ideal do ego se constitui para crianças nascidas no ambiente familiar de pobreza e de extrema pobreza? Qual olhar o Outro direciona para crianças negras, filhas de mães negras e solos? Qual distância é criada entre o ideal e o possível de cumpri-lo para esses sujeitos? Quais feridas narcísicas eles carregam? Quais identificações entre o Eu e o Outro ideal cultural são constituídas? Como o narcisismo dos pais (ou mães solos) impactou na formação intrapsíquica do eu ideal de suas crianças? Como o ideal de ego da mãe negra e solo olha para o corpo do filho preto?
Para algumas dessas perguntas, Fanon (2008) já cantou a bola “uma criança negra, normal, tendo crescido no seio de uma família normal, ficará anormal ao menor contato com o mundo branco”.
Eu não tenho resposta para todas as outras. Mas, por isso mesmo, é recomendado que psicanalistas se debrucem honestamente sobre a formação intrapsíquica da juventude negra e pobre, cujas faltas são intimamente ligadas à sua condição social e por seus corpos marcados pela cultura.
Quem concorda que ouça e cante novas bolas! Urgente!
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